Notas pandêmicas ao sul do mundo ou quanto vale tua potência?

 Quais as chances de nos transformarmos em pandêmicos, em pan+en+demos? Os gregos antigos denominavam o prefixo pan como o que remete ao universal, que diz respeito a todos, enquanto o en faz a ligação, indicando o que estava no e com o demos, com o povo.  Vemos aí, em uma simples pesquisa etimológica, que a expressão pandemia pode encontrar outros significados, configurando-se em palavra que pode ser rachada[1], aberta, para encontrarmos nela outros sentidos, outras potências.

Assim, afastando-me cada vez mais do conceito de enfermidade, doença ou flagelo que tal expressão pode conter, algumas perguntas me assaltam nesses tempos de isolamento.

Depois da pandemia ainda seremos pan, estaremos todos em conexão? Que outros vínculos poderão ser criados por meio dessa condição?  

Nesses tempos de forçadas distâncias (como se outros tempos já não os fossem) que sentimentos te invadem e agora habitam teu corpo?

Que ideias incomuns ocupam tua existência? Que potências nos atravessam nesses tempos, e qual sentido fará para nós tudo isso?

Esse tempo pode ser a oportunidade para experiências de deslocamentos da vida[2]. E como toda potência que esses deslocamentos proporcionam pode convergir para uma descolonização dos afetos?

Seria quase desnecessário lembrar que tanto os afetos, como os sentimentos, as atitudes e os pensamentos foram capturados pelas instituições de um “eu” preenchido pela cultura do individualismo e que só enxerga no outro um extrato para ganhos de toda ordem.

No entanto, um aspecto que põe isso em cheque e nos ajuda a responder (pelo menos em parte) as perguntas elaboradas anteriormente é justamente uma faceta do distanciamento social, ou do isolamento, que se torna insuportável tanto para o Estado quanto para a economia. A possibilidade de encontrar outras formas possíveis para lidar com nossa subjetividade.

 O isolamento expõe quase publicamente nossas formas privadas de existência, expõe essa condição de domínio político e social que começa sua formação, não por acaso, com o aparecimento da vida pública e burguesa da era moderna[3]. Necessárias formas íntimas de vida, resguardando não apenas ricos comerciantes, banqueiros e outras castas politicas e econômicas, mas as chamadas classes populares, os trabalhadores. A privacidade do lar, a vida particular que a residência proporciona descansa não somente o corpo, mas amortece sentidos, anestesia pensamentos, impede quase totalmente ações, pois os indivíduos se encontram na necessária letargia.  

Evidente que a intimidade já foi visibilizada e tornou-se rentável como sociedade do espetáculo, vide os reality shows. Mas esse tempo de isolamento que vivemos configura-se de outra forma, constitui-se como potência. E Nisso reside uma ruptura.

A potência que emerge a partir de certos discursos do distanciamento e do isolamento possibilitam a produção de outros sentidos, interação com os outros e com o mundo. Essa condição agora já faz parte do cotidiano daqueles que estavam mergulhados em rotinas diárias, focados na manutenção da ordem que quase nunca os beneficia. O isolamento forçou uma parada, um break, uma ruptura na rotina, muitas vezes nem percebida como rotina.

Foi inevitável. A voz mais escondida e tenebrosa do mercado foi escancarada. Os excrementos dos comandantes do sistema submergiram a superfície, ou, em linguagem chula, a merda toda veio à tona: filhos da puta sendo filhos da puta, colocando a economia acima da vida. O isolamento colocou o pensamento privado capitalista em público, jogou na rua seu mais íntimo desejo; o distanciamento parece ter aproximado as dimensões público/privado separadas desde sua invenção.




As formas capitalistas que movimentam o mundo, entre elas a do mercado, exigem de nossos corpos tanto a sua força produtiva como sua condição emocional para a efetivação do consumo. É evidente, que para a maioria da população, o isolamento ou o distanciamento social não se efetiva como ação cotidiana. Mais de cinquenta por cento da população sobrevivendo por meio de serviços informais, a maior taxa de desemprego na história do Brasil e um auxílio do governo federal emergencial irrisório durante a pandemia, resulta em necessidade urgente dessas pessoas em conseguir o básico para viver. A população “se vira” como pode, e nesse movimento contorcionista de sobrevivência são arrastados para fora de suas casas, impelidos pela necessidade da renda para o sustento familiar. A escolha é tétrica, mas muito simples: morrer contaminado ou morrer de fome! Isso é preocupante e revoltante.

Escrevo de dentro de um apartamento de dois dormitórios localizado em um conjunto habitacional na região periférica de Porto Alegre, sul do Brasil. Estou plenamente inserido na sociedade, um cidadão de meia idade, branco heterossexual e que paga suas contas com os vencimentos recebidos mensalmente por meio de minha atuação como professor de escolas públicas. Nesses tempos de tantos nadas, para muitos, o que eu tenho seria tudo.

  Nessas condições, podemos, por exemplo, falar de isolamento para aqueles que sempre foram vistos como seres apartados do mundo social? O recado “não saia de casa” é eficaz para aqueles cujas residências são marquises ou viadutos? 

È possível sugerir distanciamento social para conter o avanço da pandemia junto aqueles povos que sempre foram vítimas intencionais de contaminação como estratégia de extermínio? Refiro-me à população originária desse território, pois, desde o início da colonização europeia no continente americano, os “índios” assumiram a condição de alvo para alguma doença. Se no passado era preciso se defender das viroses trazidas pelos conquistadores, hoje estão luta contra a pandemia e para se defender de um governo genocida que igualmente deseja seu aniquilamento.   
Por fim, acredito que a dificuldade das medidas de distanciamento social e de isolamento são limitadas, já que impostas para um povo cujo modus vivendi sempre esteve baseado na aproximação e fez do contato físico sua identidade cultural.  

É a manutenção da desigualdade.



[1] DELEUZE, Gilles. Rachar as palavras, rachar as coisas. (in) Conversações. São Paulo. Editora 34, 2013
[2] A partir da afirmação do professor Jorge Ramos do Ó em seminário virtual realizado em março/abril de 2020.
[3] SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Fonte da imagem: http://deepspacedaguerreotype.blogspot.com/2016/07/norman-lindsay-1879-1969.html?zx=d41f6c165102482e



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