O JAZZ, UM ÔNIBUS LOTADO E UMA EXPERIÊNCIA SONORA

Final de tarde e um ônibus lotado, que ao contrario dos passageiros em pé ou sentados com seus olhares distantes e entediados, deslocava-se quase que freneticamente pelas ruas da cidade. Driblando sacolas, esgueirando-me por entre o traseiro avantajado de uma moça, defendendo-me de braços e pernas, encontrei perto da janela o local para me dividir entre a sonolência reinante e os aromas nada agradáveis que exalavam após um dia inteiro de trabalho. Naquelas condições procurei o (possível) melhor lugar para me postar e, acomodando os fones de ouvido, me preparei para iniciar uma viagem ...

A música fluía docemente pelos meus canais auditivos: de um lado a bateria farfalhava, por vezes explodindo em batidas certeiras encontrando as notas que pingavam de um delicado piano, do outro, um virtuoso saxofone esgueirava-se por entre os dois e equilibrava os ritmos e sons que invadiam aquele ambiente ambulante. Em certos momentos parecia observar o fantasma de John Coltrane levitando suavemente por entre os passageiros, lambendo com seu sax os ouvidos cansados daquela gente, que mesmo sem saber, viajava comigo. O improviso majestoso do saxofonista servia de combustível para suportar meu sufocante deslocamento. Enquanto o coletivo percorria a autopista eu, quase numa dança, sentia os instrumentos duelando, numa delirante disputa para ver quem me levava mais longe.

Pensava no jazz, naquela música, e nos seus músicos que iniciaram os primeiros acordes de sua história. Historicamente, nas artes, o jazz foi o acontecimento mais impressionante surgido no início do século XX já que seu desenvolvimento nos EUA foi influenciado pela migração dos negros dos estados do Sul para as grandes cidades do meio oeste[1]. Um ritmo que apesar de tocado em sua maioria por negros, e músicos por profissão, nunca se prendeu a convenções sempre manifestando uma liberdade musical e existencial. E isto muito tinha a ver com todas as pessoas que estavam comigo naquela viagem: trabalhadores com vidas marcadas, suadas e que constantemente improvisam as notas de suas existências.

No entanto, mesmo tendo surgido em meio aos grandes centros urbanos, atualmente na turbulência cotidiana da metrópole poucos espaços sobram para ouvir jazz. Uma música que não empilha notas, que não emparelha acordes. É preciso dispor de tempo, possuir sensibilidade, preferindo degustá-la como (e juntamente com) um bom vinho. Não procurar controlá-la, deixá-la percorrer o tempo e o espaço, aproveitar as suas mudanças repentinas de tons para se permitir uma transformação da audição, já cansada dos ruídos contemporâneos que invadem nossos corpos e nossas almas.


[1] HOBSBAWN, Eric. A era dos Extremos: o breve século XX:1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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